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quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Homem dos Sonhos (IV) - O Gato Preto


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Os raios de sol entraram pela janela através da cortina desbotada e acariciaram o rosto da menina adormecida em sua cama, fazendo-a abrir os olhos, mesmo contra a sua vontade. Olhou ao seu redor e sentiu uma mistura de estranheza e familiaridade. Reconhecia a outra cama no quarto, toda arrumada com o lençol esticado, mas não havia nada de estranho nisso. Viu as fotos de animais na parede acima desta outra cama, e também não havia nada de estranho nisso. Observou os poucos brinquedos distribuídos ao longo do quarto, alguns largados de um lado e outros organizados em um canto, facilmente indicando qual era de quem. Isso também não era estranho.
O estranho era justamente o fato de nada disso ser estranho de qualquer forma. Era sua familiaridade e normalidade que tornava cada uma dessas coisas  tão estranhas.
Ela levantou e aos tropeços se dirigiu para a porta, arrastando um bicho de pelúcia marrom com orelhas grandes demais para ser um urso e nariz pequeno demais para ser um cachorro.
Quando abriu a porta foi assaltada pelo cheiro delicioso de bolo de fubá que vinha de algum lugar dentro da casa. Guiada por seu nariz, a menina caminhou através de um corredor do qual não se lembrava, mas ao mesmo tempo lhe era conhecido. Ficou muito chateada ao notar que o chão estava molhado encharcando suas meias de bichinhos.
No meio do corredor havia uma porta, que estava entreaberta. Era daquela porta de onde vinha a água que se espalhava pelo chão. Ficou curiosa para saber o que havia ali dentro, mas ao mesmo tempo sentiu medo. Como se alguma coisa pudesse pular de lá em cima dela a qualquer momento.
Um miado grave chamou a sua atenção em direção ao final do corredor e viu um grande gato preto sentado olhando sério para ela. Ele miou de novo, como se desse uma bronca, e a mandasse se apressar.
Sentiu novamente o cheiro de bolo que a atraíra e decidiu seguir na direção do felino deixando de lado a porta do banheiro onde um cadáver repousava.
Ao final do corredor, chegou a uma cozinha, onde viu sua irmã mais velha arrumando a toalha de mesa para o café da manhã, como ela fazia todos os dias quando eram crianças. Só que aquela não era a casa onde cresceram, e nem eram mais crianças. Estavam na cozinha do apartamento de sua irmã, uma veterinária formada que pouco exercera a profissão dos seus sonhos, devido a implicância do marido. Marido este que a trocou por outra mulher depois de sete anos de muitas barras encaradas juntos.
Mas Leila não parecia nem um pouco com uma mulher recém-abandonada pelo marido. Ao contrário, estava alegre e jovial como a muito sua irmã não via.
Enquanto arrumavam a mesa, conversaram amenidades e riram. Contando histórias da infância, compartilhando segredos da adolescência. Uma conversa leve e descontraída. O tipo de conversa que as envolvidas nunca se lembrariam direito das palavras ditas, mas cuja memória sempre traria um sorriso ao rosto.
Sentaram à mesa e beberam o café. O gato preto subiu na mesa e Leila o acariciou, e mesmo ao ronronar de prazer por aquele toque, ele olhou para Aline com olhos semicerrados, como se a julgasse. Ela voltou a olhar para a irmã e houve um momento de silêncio entre elas.
- Você morreu, mana. - Aline falou de forma direta. Não havia medo ou tristeza em sua voz.
A resposta de Leila foi apenas um sorriso e um aceno de cabeça.
- Eu mesma peguei o seu corpo naquele banheiro ali atrás. - ela continuou.
Leila tocou a mão da irmã caçula com a sua.
- Eu sei, querida.
- Eu me atrasei. Se eu tivesse chegado mais cedo...
- Não teria mudado nada.
Aline apertou a mão da irmã.
- Isso tudo é um sonho, não é? Nada disso é real.
- Sim, isso é um sonho. Mas nem por isso é menos real. - Leila respondeu.
- Você está muito bem para uma morta. - Aline disse sorrindo.
As duas deram uma gargalhada.
- Tem seu lado bom. Não há mais expectativas, ansiedades, medos, tudo aquilo que causava rugas. Eu não recomendo para ninguém, mas tem suas vantagens.
Estava feliz por ver a irmã assim, tão leve e tranquila. Sentira falta de seu bom humor. Leila tirou o bolo do forno e serviu um pedaço para cada uma.
- Dê uma mordida e me diga o que acha.
Aline mordeu um pedaço e o sabor se espalhou pela sua boca.
- Nossa! Está igualzinho ao que a mamãe fazia.
- Pois é! Eu precisei morrer pra finalmente acertar o ponto desse bolo.
- Você já esteve com a mamãe?
- Ainda não. Mas daqui eu vou para onde ela está. Pelo menos é o que me disseram. - E olhou para o gato deitado na mesa que levantou a cabeça como se falassem com ele. - Eu estou quebrando algumas regras para estar aqui contigo. Já imaginou? Logo eu, a irmã certinha quebrando regras.
Aline riu. Das duas, ela era a que mais se metia em confusões, mas chamar Leila de certinha não era algo exatamente verdadeiro. Quantas vezes não acobertara a irmã, confirmando que haviam ido dormir na casa de uma amiga enquanto ela dava uma escapadela com algum namorado quando eram mais jovens.
Mas antes que pudesse lembrar desses causos, Leila continuou séria:
- Mas eu precisava te ver mais uma vez e te avisar, mana.
- Avisar?
- Ele vai vir atrás de você! O homem que me atacou. Ele estava atacando vítimas de forma aleatória até agora, mas me reconheceu e agora vai vir atrás de você.
- De mim? Por quê?
- Porque você o impediu anos atrás, ele nunca esqueceu disso, mesmo que eu e você tenhamos esquecido.
Aline estava confusa. Do que a irmã estava falando?
- Mas, quem é ele?
- Eu não sei o nome dele, mas...
Neste momento o gato preto miou alto e Aline não conseguiu mais ouvir o que a irmã falava, como se a voz dela fosse ficando cada vez mais distante. Via os lábios se moverem, mas não havia som. Sentiu como se caísse, mas ao invés de ir para baixo, despencava para trás, para longe da irmã, da mesa de café, através do corredor...
Piscou algumas vezes ao despertar e viu diante de si dois olhos amarelos brilhantes sobre ela. A visão deu-lhe um susto a ponto de dar um pulo para trás e cair da cama onde estava. Soltou uma exclamação de dor e percebeu que a fonte do seu infortúnio era apenas um gato preto que a observava balançando o rabo calmamente.
- Gato filho da puta! - bradou atirando um travesseiro no animal que escapou com um salto ligeiro, com um segundo salto estava fora da cama e com um terceiro deixava o quarto.

* * *
Mancando e xingando ela entrou na cozinha onde André já preparara o café. Imaginou que o cheiro tinha inspirado o sonho do qual despertara.
- Bom dia, amor. - disse com um beijo, quando ele entregou a xícara com o líquido desejado.
- Bom dia, querida. O que foi esse barulho agora a pouco?
Aline provou o café e o gosto não a agradou. Não que estivesse ruim, ao contrário, estava exatamente como gostava. Só que o café de Leila era bem mais forte e encorpado.
- Foi o Tom que me acordou com um susto. Mal abri os olhos e dei de cara com esse bicho olhando pra minha cara.
- Mamãe, o nome dele não é Tom, é Siiitomas. - interrompeu Cristina sentada a mesa já com a cara toda suja de migalhas de pão e manteiga. Como ela conseguia se sujar tanto e tão rápido era um enigma para seus pais.
- Quem te disse isso, querida?
- Ele mesmo, ué!. - respondeu dando de ombros como se dissesse algo óbvio.
O animal miou parado ao lado de um pratinho no chão.
- Ele deve estar com fome. - Aline comentou sentando devagar ao lado da filha.
- Deve estar, ele não comeu nada do que eu deixei pra ele ontem.
- Vai ver ele não gosta dessa ração.
- Mas é a mesma que sua irmã dava. Vai ver ele também está sofrendo com... - e olhou de soslaio para a menina.
Ainda não haviam conversado com Cristina a respeito da morte da tia, e pra falar a verdade nem sabiam por onde começar. Por hora só disseram a ela que Leila teve de viajar as pressas e pediu que eles cuidassem do gato.
- Que nada, André. Gato é um bicho muito independente, não liga pra ninguém além dele mesmo.
- Pode ser. Qualquer coisa eu levo ele no veterinário mais tarde, você viu que ele está com um baita corte na lateral?
E André se levantou para pegar o gato, o qual saiu em disparada assim que ele chegou muito perto.
- Que bicho arisco.
- Minhas costas que o digam. Acho que vou ter de tomar um remédio antes de sair.
- Mamãe, você tá dodói? Quer um beijinho pra sarar?
- Coisa fofa da mamãe. Eu quero beijinho sim, e um abraço bem gostoso também.
E agarrou a menina enchendo-a de beijos.
- Agora eu quero a senhora se arrumando rapidinho para irmos para a escola. - disse soltando-a.
E Cristina partiu em disparada para seu quarto.
- Tive um sonho tão esquisito essa noite. - Aline falou para o marido depois da pequena já ter saído.
- Pensei que você não lembrasse dos seus sonhos.
- Pra você ver como foi esquisito. No sonho eu encontrei com a Leila, e ela tentava me avisar alguma coisa, mas eu não entendi muito bem.
- Deve ser coisa da sua cabeça, com tudo o que aconteceu... - André disse acariciando o ombro dela.
Aline entrelaçou seus dedos nos dele, trazendo a mão para seus lábios e deu um leve beijo, como agradecendo pelo apoio e carinho. Os olhos deles se cruzaram e ela sentiu lágrimas querendo brotar.
- Mais tarde, no enterro, eu te conto melhor. Agora deixa eu ver a nossa menina antes que ela invente de ir de fada sininho ou branca de neve para a escola. - disse se afastando.

* * *

Poucas coisas irritavam mais Aline do que chegar atrasada. Sua mãe dizia, quando ela era criança, que até para nascer ela teve pressa, nascendo de oito meses no meio da festa de aniversário de sua avó. No dia de seu casamento ficara agoniada rodando de carro, sem muita paciência para esperar o momento de sua grande entrada.
A única outra coisa que a irritava mais do que chegar atrasada era ficar parada no trânsito. E quando essas duas coisas se combinavam ela ficava pegando fogo de raiva.
Quando chegou ao cemitério para o enterro da irmã ela poderia ser confundida com o Monte Vesúvio em erupção. Não que ela estivesse realmente atrasada. O caixão só seria fechado dali a mais algumas horas, mas imaginava que as pessoas já estariam chegando e esperavam que ela estivesse lá para recepcioná-los. Afinal era sua única irmã, diriam com certeza.
Além do trânsito cada vez mais caótico na cidade e a dificuldade para estacionar que ela encontrou ao chegar no cemitério onde Leila seria enterrada, outro motivo para o atraso de Aline foi uma discussão com Cristina na porta da escola. A menina esquecera o seu inseparável Sr. Urso ao sair de casa e chorava aos berros por ele. Não havia como voltar em casa e pegar o animal de pelúcia sem se atrasar ainda mais para o velório.
Ela brigara com a filha, com um tom mais ríspido do que desejava. Certamente por causa de todo o nervosismo dos últimos acontecimentos, não que a menina tivesse qualquer culpa.
Ao chegar na sala onde o corpo de Leila era velado, André veio até ela ainda na porta, encontrando-a ofegante da corrida que dera para chegar ali.
- O que houve? Estava ficando preocupado. - sussurrou ele.
- Cristina deu um show para entrar na escola por causa de um brinquedo idiota. - ela disse, suspirando. - E ainda esqueci meu celular em casa. Não sei onde ando com a cabeça.
Na verdade, sabia. Ambos sabiam. E foi por isso que André a abraçou de forma acolhedora.
- Está tudo bem. - ele disse beijando-lhe a testa. - Agora respire fundo e fique calma, ok?
- Por quê? Alguma coisa errada?
Olhou ao redor e viu poucas pessoas distribuídas pela pequena sala de velório. Alguns amigos de Leila dos tempos de faculdade, junto com alguns amigos da delegacia de Aline que foram até lá dar-lhe seus sentimentos. Sua irmã sempre fora amável, mas tímida, e por isso conquistou poucos amigos. Para piorar, a possessividade de seu ex-marido fez com que se tornasse ainda mais reclusa.
O mesmo ex-marido que naquele momento estava de pé ao lado do caixão acariciando os cabelos da falecida.
Vê-lo inclinado sobre ela, como se ele fosse o pobre viúvo sofredor fez Aline sentir uma queimação em seu estômago e contrair os músculos. André até tentou segurar a esposa, mas ela se desvencilhou de seus braços com uma força que mesmo o professor de educação física não era páreo.
- Tire suas mãos dela. - ela falou baixo, mastigando cada palavra.
- Aline! Quanto tempo não nos vemos. Muito triste que seja nessas condições. - Márcio disse se aproximando dela com os braços abertos.
Quando ele chegou perto ela levantou o braço colocando a mão espalmada no meio do peito dele.
- Por mim, esse tempo poderia ser eterno. O que está fazendo aqui, Márcio?
Ele mantinha um leve sorriso no rosto, como quem sabe de algum segredo ou fala com uma criança.
- Ora, minha esposa morreu e...
- Ex-esposa! Você deixou isso bem claro quando a abandonou por uma vagabunda qualquer.
Ele estreitou os olhos na direção dela por apenas um instante olhando para ela, mas manteve o sorriso debochado.
- Nós ainda não havíamos nos divorciado, então perante a lei ainda éramos casados. Você, de todas as pessoas deveria saber disso. - e deu uma risada forçada.
Aline cerrou os punhos e sentiu a presença de André as suas costas, tentando acalmá-la.
- Diga logo o que você quer e volte para o buraco de onde você não deveria ter saído, Márcio! - ela disse entre dentes.
- Como eu dizia, minha esposa morreu. - respondeu enfatizando a palavra “esposa” olhando-a nos olhos. - E eu vim lhe prestar as últimas homenagens.
- A melhor forma de homenageá-la seria dar um tiro na própria cabeça.
Márcio deu uma nova risada, tão falsa quanto a primeira e colocou mão no ombro dela.
- Que isso, cunhadinha. Vamos deixar...
Não conseguiu terminar a frase, pois Aline já havia agarrado sua mão e torceu-a junto com o braço fazendo-o se curvar. A única resposta dele foram gemidos de dor e xingamentos enquanto ela o conduzia para fora do velório. Lá ela o soltou, mas de uma forma a fazê-lo cair de cara no chão.
- Isso é agressão! Eu vou te processar, sua vaca!
- Eu tenho várias testemunhas lá dentro, dentre elas três policiais, que vão atestar que eu estava apenas me defendendo de um contato indesejado. Além do que, este é um momento apenas para amigos e familiares, e você não é nenhum dos dois.
- Você não pode fazer isso. Eu tenho meus direitos!
- Então entre na justiça por eles. Até lá minha irmã estará finalmente longe do seu alcance para sempre.
- Isso não vai ficar assim. Você vai me pagar, sua vagabunda!
- Ameaçar uma policial? Sabia que eu posso te prender por isso, não é?
Ele abriu a boca, mas apenas bufou enquanto ajeitava os cabelos que ficaram desgrenhados na queda.
- Mas em respeito a minha irmã, vou deixar você ir embora. Considere isso como a última coisa que você vai sugar dela, seu verme.
E dizendo isso deu as costas para o “cunhado” e voltou a sala do velório onde a maioria a olhava de boca aberta, e alguns lhe direcionavam sorrisos e olhares de aprovação.
Ela se aproximou do caixão pensando “agora você pode partir em paz, mana.” Ficou impressionada com o semblante calmo da irmã, uma paz que há muito não vira naquele rosto em vida parecia ter se instalado na morte. Podia perceber até um leve sorriso em seus lábios, como se aprovasse a sua última atitude ao despachar aquele traste.
E ao olhar para os lábios da falecida, Aline teve a impressão por um instante de vê-los se mover, mas percebeu que era apenas a lembrança do final do sonho que tivera. Sentia que a irmã queria lhe dizer algo importante, mas ela não conseguia distinguir as palavras.
As pessoas se aproximaram e apresentaram seus sentimentos a retirando de seus devaneios. Uma professora de Leila, dos tempos de faculdade comentou, com a voz embargada, o quanto sua irmã teria sido uma excelente veterinária, e que ela mesma a havia indicado para trabalhar em um haras em uma cidade próxima, mas que ela decidira não aceitar porque o marido preferia ficar na capital.
O chefe de Aline disse que ela poderia tirar uma despensa se precisasse de tempo para organizar sua vida. Ele sabia como a irmã era importante para ela e deu-lhe um abraço de apoio.
Alguns tios com quem ela não tinha contato em anos perguntaram sobre sua vida, sobre sua filha, comentando que algumas vezes as tragédias podem servir para reaproximar a família.
Quando finalmente chegou o momento de fechar o caixão, Aline pediu para aguardarem um momento para uma última despedida. Ela ajeitou uma mecha do cabelo e olhou bem o rosto pálido com lágrimas nos olhos. Por um instante pareceu ouvir sua voz e, enquanto a tampa descia, a imagem dela no sonho voltou a sua mente. Tentava lembrar do que ela dissera, sem conseguir.
Durante a descida do caixão para seu descanso final, ela fechou os olhos e a imagem da irmã na cozinha de seu apartamento apareceu nítida e clara, mesmo que ela não escutasse as palavras, podia ver seus lábios se movendo e conseguiu compreender uma única palavra, um nome.
Aline abriu os olhos de repente e pediu licença ao marido se afastando do local do enterro. Ouviu alguém perguntar se estava tudo bem, mas nem prestou atenção na resposta de André. Já estava com o celular no ouvido esperando que os toques de chamada se transformassem na voz de alguém que diria que estava imaginando coisas, que seu pressentimento era bobo e tudo não passou de um sonho motivado pela dor da perda da irmã.
Mas a resposta que recebeu não poderia ser mais contrária a desejada.

* * *
“Nós já íamos ligar para a senhora.”
Foi o que a atendente disse ao telefone.
Mentira!
“É que houve um probleminha.”
Ela continuou.
Outra mentira. Aquele problema não tinha nada de “inha”.
“Nós não sabemos onde ela está.”
A única verdade dita naquela conversa de telefone em que apenas a atendente falava sem parar, dando explicações e justificativas que de nada adiatavam.
Aline queria gritar, esbravejar, e descrever, com detalhes, aonde a atendente devia enfiar o seu “sinto muito”.
Mas ela não fez nada disso.
Não fez nada.
Ficou completamente anestesiada diante da dor de saber que sua filha desaparecera.
A partir daí, os acontecimentos passaram de forma rápida e enevoada ao seu redor. Alguém (André? Daniel? Seu chefe?) veio até ela no cemitério para ver se estava tudo bem. Ela deve ter dito alguma coisa, pois depois foram até a escola de Cristina. Após muitas lamúrias e gritos, alguns da própria Aline, que mesmo em seu estado teve alguns rompantes, alguém da delegacia disse que a encontrariam e que ela devia ir para casa.
Era melhor mesmo sair dali, antes que fizesse algo que pudesse se arrepender.
Entrou em casa com André ao seu lado. Ele disse para ela descansar, que iria preparar um chá para eles. Ela concordou, mas em vez de entrar no próprio quarto ela foi até o da filha, arrastando os pés como um zumbi.
Ainda tinha alguma mínima esperança de que ao abrir a porta veria a menina ali com seu sorriso banguela e que ela viria correndo para o seu abraço. Coisas tão simples, e de que sentia tanta falta naquele momento.
Tudo que encontrou foi a cama desarrumada, brinquedos espalhados e o Sr. Urso em cima da cama. O mesmo bicho de pelúcia que fora motivo da discussão mais cedo. Aline o levantou e um pensamento macabro atravessou sua mente.
“E se esta briga fosse a última vez que falaria com a filha?”
Ela limpou os olhos respirando fundo.
“Não podia pensar assim. Tinha de ser forte. Iria encontrá-la.”
Mas as lágrimas teimavam em rolar e ela, quase sem perceber, abraçou o urso sentando-se na cama. E chorou como a muito não chorava. A dor e a tristeza brotando de seu peito com a força de um rio.
Pouco depois, um barulho chamou a sua atenção e viu o gato preto sentado sobre as patas traseiras no chão próximo a ela balançando a cauda de um lado para o outro lentamente.
- Vem cá, Tom. Nesse momento até a sua companhia é boa. - e esticou a mão na direção dele.
O animal respondeu com um arranhão na mão oferecida e depois disparou para debaixo da cama.
- Filho da...
Foi a gota que faltava! Depois de enterrar a irmã, ter de aguentar o ex-cunhado e o sumiço da filha, esse gato desgraçado ainda a arranhava no momento em que ela lhe estendia uma trégua?
Aline se abaixou do lado da cama, vendo apenas os olhos amarelos brilhantes.
- Eu vou te pegar, seu desgraçado. - disse com raiva.
O gato apenas miou de seu esconderijo, o que Aline entendeu como algum tipo de desafio e mergulhou embaixo da cama atrás dele na escuridão.
E continuou caindo...

2 comentários:

  1. Caramba, onde ela vai parar? Aguardem a próxima parte deste conto eletrizante... :)

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    1. Esse conto já tá virando uma noveleta. rs
      Obrigado pelo apoio, Ana.
      Um elogio seu tem peso dobrado. :)

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