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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O Homem dos Sonhos (V) - No Limite dos Pesadelos


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Quando alguém olha debaixo da sua cama, pode encontrar algumas surpresas. Um sapato sem par que não é usado faz séculos, uma caixa de fotos antigas com imagens de pessoas esquecidas, restos de comida criando mofo, ou até um rato morto. Aline preferia ter encontrado um rato morto. Em vez disso, ela encontrou um buraco aparentemente sem fundo.

O grande problema é que ela só descobriu isso quando já estava caindo. E a constatação de não haver fundo vinha do tempo em que ela estava caindo dentro da escuridão, sem nenhum indício de sua queda encontrar seu fim.

E ainda havia o som terrível como um grito de desespero que se ecoava por todos os lados.

O grito era dela mesma, a propósito.

Mas como tudo que tem um começo também tem um fim, seu mergulho nas trevas terminou abruptamente com o som de algo se rachando e ela imaginou serem seus ossos.

Ficou surpresa ao descobrir que não tinha nada quebrado em seu corpo, apenas um pouco dolorida no ponto em que seu corpo atingiu o chão. Por sorte foi um ponto macio. Olhou ao redor e precisou piscar algumas vezes para se adaptar a luz de penumbra do ambiente. Estava em um lugar ambiente escuro e úmido, como o interior de uma caverna.

Aterrissara em uma pilha de grandes pedras escuras, que possuíam uma textura frágil, como a casca de um ovo. Havia uma rachadura sob ela de onde vertia um líquido amarelado nojento, mas não teve muito tempo para entender onde estava, pois o monte começou a desmoronar debaixo dela.

O que pareciam ser um amontoado de pedras revelou-se uma série de carapaças com pernas finas, antenas, olhos e bocas movendo-se. E não pareciam nem um pouco felizes por Aline ter esmagado uma delas com sua queda.

As carapaças, cada uma delas quase o dobro do tamanho de uma pessoa, a rodearam, certamente imaginando que ela seria uma presa fácil. E não estavam enganadas. A visão destes seres despertou um medo primitivo que deixou Aline totalmente paralisada de pânico.

A cada instante o círculo ao seu redor se fechava mais e mais, conforme aqueles seres asquerosos se aproximavam. Suas antenas se movendo de um lado para o outro com cada passo que davam em sua direção.

Ficaram tão próximos que ela podia ver um líquido gosmento escorrer de suas bocas e seu reflexo em seus olhos multifacetados. Mas quando estas mesmas bocas chegaram ao ponto de quase tocá-la, algo dentro dela despertou. Como um animal que, diante de um inimigo superior e ao mesmo tempo tem qualquer possibilidade de fuga negada, ela fez a única alternativa ao seu alcance, e golpeou a criatura mais próxima com qualquer coisa que tivesse a mão.

A cabeça insectóide dobrou-se para o lado com um estalo alto pela com a força do golpe desferido. As demais criaturas ficaram paradas, algumas deram um passo atrás. Aparentemente não esperavam nenhuma resistência.

Diante da hesitação de seus algozes e com o coração batendo acelerado, Aline agarrou o objeto com as duas mãos e partiu para o ataque, golpeando cegamente.

Dois monstros caíram do seu lado antes que os outros começassem a reagir. Alguns se afastaram, possivelmente temendo serem as próximas vítimas de sua fúria assassina. Outros tentaram atacá-la por trás. Girando o corpo, golpeando um deles, o que fez os outros hesitarem por um instante, enquanto suas antenas moviam-se freneticamente.

Aline olhava todos ao seu redor sentindo a tensão em seu corpo, como uma mola pressionada ao seu máximo. Suas mãos erguidas ao lado de sua cabeça unidas ao redor do objeto que lhe servia de arma. Sua respiração arfando, aos poucos foi reduzindo de intensidade, se acalmando. Mas se acalmar era o que ela menos queria nesse momento, porque com a calma viria novamente o medo, e medo era um luxo que ela não podia mais se permitir naquele momento.

- Vocês querem mais? Então venham pegar! - bradou em desafio.

Aparentemente, este era todo o incentivo que as criaturas precisavam, pois como um só eles voaram para cima dela. Ela brandiu sua arma para um lado e para o outro, a cada golpe derrubando um deles.

Mas eles eram muitos, incontáveis.

Era uma batalha condenada desde o início.

Eles a agarraram e puxaram para todos os lados, o objeto que ela usara como arma foi arrancado de suas mãos, e eles continuaram puxando, esticando seus braços e pernas abertos. O movimento das antenas agora parecia uma gargalhada silenciosa, zombando de sua presa. Sentia a dor em suas juntas se espalhando por seu corpo e gritou, certa de seu fim.

Repentinamente, a pressão em seu braço esquerdo afrouxou, e sentiu o movimento ao seu redor, enquanto passaram a puxá-la para uma única direção pelos outros membros de uma forma desajeitada.

Aline foi derrubada quando um vulto negro voou por cima de si sobre seus algozes. Observou perplexa enquanto o vulto pulava de criatura em criatura que saiam em debandada, dispersando-se e enfiando-se em quaisquer buracos escuros que encontrassem para se refugiar. Levantou-se rapidamente e olhou em volta em meio a confusão, procurando lugares para se esconder.

O vulto já se encontrava a uma certa distância quando retornou lentamente. Aline procurou algum objeto com o qual pudesse se defender, mas não havia nada além dos corpos caídos dos grandes insetos que a atacaram, e cujos sobreviventes já não estavam mais a vista. Afinal, não sabia se fora salva, ou se era um aperitivo disputado para o jantar.

Conforme o vulto se aproximava, foi se tornando possível distinguir-lhe as formas, como se ficassem pouco a pouco mais nítidas. Era algo como uma grande pantera, maior do que qualquer uma que Aline já vira, não que ela já tivesse visto alguma pantera em sua vida, mas a criatura de pelos negros que agora se aproximava em passos lânguidos e trazendo algo em sua boca chegava quase a altura de seu peito.

Contraditoriamente, ao olhar para os olhos que pareciam dois brilhantes cristais de âmbar, Aline sentiu uma onda de alívio atravessar seu corpo e relaxou sua guarda. Reconhecera algo neles, algo que sua mente racional insistia em dizer ser impossível, mas sua mente racional não parecia ser a melhor conselheira neste momento.

- Tom!? É você?

A pantera negra estreitou seus olhos, dando a impressão de estar prestes a dar o bote. Soltou o objeto em sua boca e levantou a cabeça de forma imponente.

- Sir Thomas III, cavalheiro da irmandade dos gatos negros. - disse com um forte sotaque, parecendo um ator de um filme antigo. - Sim, sou eu!

- Você não parece com nenhum cavaleiro que eu já tenha visto. - Aline comentou de forma abrupta.

- Eu disse cavalheiro! Ou você consegue me imaginar em cima de algum cavalo?

Ela conseguia. E teve de prender o riso com a imagem que conseguia ser menos surreal do que o fato de que estava conversando com uma versão gigante do gato de sua irmã.

- O que eram aquelas coisas?

- Vermes que infestam todos os mundos, rastejando na escuridão, sobrevivendo da podridão dos outros. Em seu mundo vocês os chamam de baratas. - ele respondeu se abaixando para apontar para o objeto que trouxera em sua boca. - Estavam atrás disso. Você deveria tomar mais cuidado com algo tão valioso.

Aline pegou o objeto do chão onde Thomas o deixara e notou surpresa ser o mesmo que usara como arma, minutos atrás.

- Mas isso é apenas um urso de pelúcia!

- Claro, assim como isso no seu pescoço são apenas duas hastes de metal dourado perpendiculares entre si.

Ela ignorou o sarcasmo na voz do felino e tocou a cruz dourada por um instante como para ter certeza de que ainda estava lá.

- Que lugar é este? O que estamos fazendo aqui?

- Estamos no limiar do reino dos pesadelos, e eu trouxe você aqui para me ajudar a salvar sua filha. Mais alguma pergunta tola ou podemos seguir em frente? - ele respondeu mostrando os dentes e dando-lhe as costas sem esperar por resposta.

Ela ainda tinha muitas perguntas, mas como não sabia qual delas se enquadrava ou não na categoria “tola” preferiu se calar por ora. Pegou o urso ainda caído e seguiu Sir Thomas aonde quer que ele a estivesse guiando. Ele mencionou que estavam ali para salvar sua filha e isso era mais importante do que qualquer outra coisa.

* * *

Nos sonhos, às vezes vamos de um lugar para o outro sem nos darmos conta de como isso aconteceu. Ao tentarmos relatar estes deslocamentos no dia seguinte, nos confundimos, chegando ao ponto de dizer “era ali, mas também era lá”.

Desta forma, o cenário ao redor de Aline e Thomas mudou de uma caverna úmida e rochosa para uma densa floresta de plantas semelhantes a trepadeiras petrificadas retorcidas e emaranhadas como uma gigantesca teia de aranha, das quais brotavam frutos murchos enegrecidos, cada um do tamanho de bolas de basquete que exalavam um odor pútrido.

Thomas ia na frente agachado, com passos curtos e lentos, como um gato à espreita de um pombo desavisado. Aline o seguia sem um pio, já participara de tocaias o bastante para saber a importância da discrição a fim de não avisar o alvo de sua presença.

Sentia falta de sua pistola. A segurança do aço frio em suas mãos ajudaria a aquietar seus espírito, além de dar algum senso de realidade a toda aquela loucura.

Virou-se de repente, esquadrinhando a mata ao seu redor. Não vira nada, mas sentira alguma coisa, como um movimento no canto do olho. Voltou-se novamente para o outro lado. A mesma sensação, mas ao olhar, não havia nada lá.

Pensou em avisar Thomas, mas viu que ele já se distanciara, aparentemente não se importando em deixá-la para trás. Rangendo os dentes de raiva ela apertou o passo para alcançá-lo. Sentia que algo a observava e olhava para os lados sem enxergar nada por entre as folhagens. Sem perceber, apertou mais o urso em suas mãos, como quem segura uma arma em uma situação de risco, ou como uma criança com medo do escuro.

Na pressa ela pisou em um dos estranhos frutos enegrecidos que estava espatifado no chão em seu caminho. Seu rosto se contorceu de nojo quando sentiu um cheiro de ovo podre, vinagre alguma coisa excessivamente doce se espalhar. Ergueu o pé de onde escorria um líquido viscoso e conteve uma ânsia de vômito.

Novamente teve a sensação de ser observada, mas diferente de antes ela ficou etática, fingindo prestar atenção nos pequenos fragmentos brancos como ossos que não pareciam nem um pouco com sementes dentro do fruto em que pisara. Enquanto isso, tentava enxergar o que quer que despertava os seus instintos com o canto dos olhos.

E foi assim que ela viu o vulto.

Não podia distingui-lo muito bem, parecia ser uma pessoa, mas tinha certeza de que estava ali. Viu que Thomas se distanciara de novo, e contra toda a prudência chamou por ele.

O grande gato negro levantou suas orelhas e voltou-se em sua direção, ao que ela lhe fez um sinal para que retornasse, o que ele fez após apenas um momento de hesitação.

- O que foi? - ele perguntou com um leve rugido quando já estava próximo dela.

Ela fez um sinal discreto para o lado em que vira o vulto, mas Thomas continuava olhando para ela de forma inquisidora. Aline tentou mais uma vez, fazendo um gesto com a cabeça, nem tão sutil, na esperança que ele caísse em si. Quando isso não deu certo ela soltou um suspiro, vencida.

- Tem alguma coisa ali. - e apontou, claramente dessa vez.

Thomas respirou fundo e olhou rapidamente para a direção para onde ela apontava antes de responder.

- Não há nada ali. Nada importante, pelo menos. Apenas alguns sonhos perdidos. É com os corvos que precisamos nos preocupar. Esta área é infestada deles, e já deveríamos ter encontrado alguns a esta altura.

- E o que faremos agora, então?

- Nós não faremos nada. Você fica aqui e aguarda. Eu vou na frente para tentar descobrir o que está acontecendo.

- Ficar aqui? Por que não posso ir com você?

- Porque iria me atrasar, como já está fazendo. - ele respondeu dando-lhe as costas. - Permaneça na trilha e ela te protegerá.

Aline abriu a boca para dizer o que pensava para aquele gato vira-lata, mas com um salto ele já havia desaparecido, como se feito de sombras. Deixando-a sozinha resmungando sobre como iria transformá-lo em tamborim assim que voltassem para casa.

Então olhou para a vegetação ao seu redor e deu-se conta de estar completamente só em um lugar estranho e desconhecido e se perguntou se conseguiria voltar para casa.

A sensação de estar sendo observada se intensificou e ela inconscientemente apertou o urso de pelúcia em seus braços. Sentia-se desolada como uma criança perdida em um lugar escuro. Parecia sentir um vulto se movendo ao seu redor sempre que não estava olhando.

Quanto tempo já havia se passado desde que Thomas havia partido? Ela não sabia dizer. E se ele não voltasse? E se sua filha já estivesse morta? Conforme as perguntas se acumulavam em sua mente, sua respiração acelerava.

Dizia para si mesma que estava imaginando coisas. Thomas dissera que não havia nada lá.

Nada de importante, ele dissera.

Em meio a estes pensamentos inquietantes, ela ouviu algo. Primeiro achou que fosse o vento, mas percebeu que as folhas não se moviam. Prestou atenção e notou se tratar de uma voz. Tentou identificar o que dizia e ficou surpresa ao notar que chamava por um nome.

Seu nome!

Aline levantou-se em alerta e apurou os ouvidos para ter certeza de ter escutado certo.

Sim, a voz sussurrava seu nome. Aline. Aline. E não era uma voz qualquer. Ela a reconhecia.

Com pouco esforço conseguiu determinar de onde vinha. Cada vez mais a voz ia se tornando mais nítida, mesmo que parecesse distante.

Quando ia entrar na mata, ela hesitou. Olhou para a direção por onde Thomas partira e lembrou-se de sua recomendação para permanecer onde estava. Mas a voz insistia e ela tomou sua decisão.



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