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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Escute os mais velhos

Sandro Quintana

 Nos dias de hoje, ninguém escuta ninguém. Principalmente os mais velhos. Se as pessoas escutassem, muitos situações terríveis poderiam ser evitadas. Esta é uma história de uma dessas situações.

***

A vizinhança parecia saída de algum filme americano. Sem grandes prédios que impedissem de ver o céu azul, apenas grandes casas com portões altos e jardins na frente. Os brinquedos da pracinha estavam cheios de crianças acompanhados de suas mães ou babás, e os bancos com namorados de várias idades, desde adolescentes até um casal de idosos que davam pipoca na boca um do outro.

Para Roberto que nascera e crescera em apartamentos a sua vida toda, aquile lugar parecia saído de um sonho. Ele não acreditou quando o corretor lhe falou da casa a venda nesta vizinhança. Precisava ver com seus próprios olhos, e agora que vira, tentava controlar a empolgação que lhe invadia. Não queria que o corretor percebesse quão interessado estava e aumentasse o preço.

Mas não demonstrar sua emoção seria uma tarefa quase impossível! Conforme estacionava o carro, ele ia olhando cada uma das casas, tentando identificar aquela cujas fotos o corretor lhe enviara dias antes.

Descobriu que a sua casa era a única casa branca na rua. Uma bela casa de dois andares, com um muro de pedras na frente e um portão igualmente branco. Havia um pequeno canteiro entre a casa e o muro que podia ser visto da rua e onde um jardim modesto mas de muito bom gosto estava plantado.

Eduardo, o corretor, ainda não havia chegado, mas não estava atrasado. Roberto que saíra do escritório mais cedo, cancelando seus compromissos para a tarde, e assim não correria o risco de se atrasar, caso se perdesse nos caminhos ainda pouco conhecidos, mas que ele já imaginava se tornando familiares depois que ele e a noiva se mudassem para lá.

- Bom dia! Você é o doutor Roberto? - perguntou uma voz de dentro do portão.

Roberto se sentiu arrancado do seu sonho em que via um futuro brilhante a frente por aquela voz. Não tinha visto ninguém quando chegara, mas agora vira um senhor de cabeleira bem branca que chegava a refletir o sol forte daquele dia. Ele usava uma camisa branca suja de terra.

- Sim, sou eu sim! - Roberto respondeu, para depois completar. - Aliás, bom dia, desculpe a falta de modos, mas não tinha visto o senhor.

- Senhor, só no céu, doutor. Minha graça é Erasmo. O senhor não me viu porque estava abaixado atrás das orquídeas. - e fez um gesto indicando o grande arbusto que ficava a um canto do jardim com lindas e delicadas flores rosadas.

- É o senhor quem cuida do jardim? Faz um excelente trabalho.

- Muito obrigado. Faço o que posso, já não sou mais tão jovem quanto antigamente. - e tirou um pano do bolso de trás da calça para secar a testa suada. - Mas já faço isso desde a época do seu Domingos.

- Seu Domingos? - indagou curioso Roberto.

- Sim. Era o antigo dono dessa casa. Ele amava essa casa! - disse Erasmo com um tom saudoso na voz. - Foi muito triste quando tiraram ele daqui. Ele não queria sair de jeito nenhum! Dizia que preferiria morrer na casa que ele mesmo construiu.

- E ele morreu do que?

Nessa hora, Roberto sentiu uma mão puxando ele com força pela manga do terno.

- Eu disse pra ele! Eu disse! Eu disse pra ele não entrar! - Roberto era sacudido por uma mulher idosa, vestida em maltrapilhos típicos de uma mendiga. Ela segurava uma boneca com uma das mãos, enquanto a outra segurava o terno dele com força. - Ele não me ouviu! Mas eu disse! Eu disse!

- Calma, minha senhora! - Roberto falava para ela surpreso pelo estranho ataque.

Ele tentava puxar o braço que a mendiga segurava, mas as mãos dela pareciam mais garras, podia sentir as unhas dela apertando sua carne por baixo do tecido. Ele estava se segurando para não machucá-la, mas ela não parecia ter a mesma preocupação e acabou por empurrá-lo contra a grade do portão. Roberto se perguntava como uma velhinha podia ser tão forte assim?

Erasmo ainda estava enrolado com as chaves para tentar abrir o portão, ambos tentando acalmar a velha com palavras sem muito sucesso, quando Eduardo chegou correndo por trás dela e segurando firme no seu ombro lhe falou da forma mais tranquila que conseguiu:

- Ei, Maria, calma, calma! Não quer que eu tenha que te tirar daqui a força, não é? Vão tirar o seu filhinho de você.

As palavras pareceram surgir algum efeito nela, que foi soltando o braço de Roberto enquanto se afastava do portão. Ela então abraçou a boneca em seus braços e começou a murmurar:

- Não, meu filho não. A gente ia ter um filho. - ela observava os três homens com olhos esbugalhados que não pareciam vê-los realmente. - Mas eu disse pra ele não entrar, eu disse, eu disse...

E foi se afastando e murmurando de forma repetitiva pra si mesma.

- Tudo bem, Roberto? Ela não te machucou não é? - Eduardo se virava para seu cliente que ainda estava pasmo se recuperando do ocorrido.

- Estou bem. - Ele olhou para o braço, puxando a manga para ver apenas algumas pequenas marcas avermelhadas. E completou com um sorriso nervoso - Ela machucou mais o meu orgulho do que qualquer outra coisa. Quem era essa doida?


- Normalmente ela é calma, vive aqui na rua. Ela costuma dormir na igreja próxima. Acho que só fica nervosa quando aparece alguém estranho por aqui. - Eduardo explicava.

- Não é só alguém estranho, mas toda vez que alguém vem ver essa casa. - disse Erasmo que finalmente tinha conseguido abrir o portão.

- Ora, Erasmo, não me venha dizer que você acredita nas histórias que o povo daqui conta?

- Que histórias? - Foi a vez de Roberto interceder. Recuperado do ataque e interessado no assunto.

- De que a Maria louca era amante do velho Domingos - Eduardo respondia enquanto apontava para a mendiga que já se encontrava um pouco afastada. - E que ela teria matado o velho pra ficar com a casa.

- Claro que não, seu Eduardo, até porque ela só apareceu por aqui tem uns três meses, e já vai pra quase um ano que o seu Domingos partiu, que Deus o tenha. - explicou Erasmo fazendo o sinal da cruz pelo falecido. - Mas que é esquisito que ela só fique violenta assim com quem vem ver a casa, eu acho que é!

- Não ligue pro Erasmo, Roberto. Senão daqui a pouco ele vai estar te contando histórias de fantasmas que arrastam correntes pelo sótão, e mulas sem cabeça. - riu Eduardo.

Os outros dois homens também riram. Até Erasmo deu uma risadinha apesar de parecer não ter gostado tanto assim da brincadeira. Roberto já pensava se não podia tirar proveito disso para fazer uma proposta pela casa por um valor menor.

- Mas com exceção da nossa excêntrica Maria. - Acrescentou Eduardo. - Acho que você viu que a nossa vizinhança é bem tranquila, não é, Roberto? Gostaria de ver a casa por dentro para podermos começar a ver os últimos detalhes do negócio?

- Vocês está mesmo com pressa, hein, Eduardo? - retorquiu Roberto de forma divertida.

- Como dizem os americanos: “Tempo é dinheiro!” - Eduardo respondeu rindo divertido.

- Bom, eu só estou esperando a minha noiva que ficou de me encontrar aqui. Mas vocês sabem como é mulher, né? - Comentou Roberto, arrancando risadas dos outros dois.

Nesse exato momento o refrão da música “Gatinha Manhosa” encheu o ar. Roberto alcançou o bolso interno de seu paletó, tirando seu celular.

- Falando do diabo, ou melhor, da diaba... - Roberto brincou, o que fez os outros dois darem novas risadas. - Alô, querida! Onde você está?

- Oi, docinho. Desculpe, mas eu vou demorar mais do que eu esperava. Uma das madrinhas, passou mal então atrasou tudo. Você me perdoa?

Mesmo falando com ela apenas pelo telefone, Roberto podia vê-la fazendo aquele beicinho que gostava tanto.

- Está bem, querida. Mas é que eu já estou aqui com o Eduardo vendo a nossa futura casa e...

- E ela é bonita? - Eliana o interrompeu.

- É linda! É tudo que nós vimos nas fotos e mais. Tem até uma pracinha onde nossos filhos vão poder correr e brincar.

- Filhos, senhor Roberto? - Eliana questionou dando ênfase ao “S” de filhos.

- Sim, senhora Eliana. - ele respondeu brincalhão. - Algo contra filhos?

- Vamos tentar UM filho, primeiro, senhor Roberto? E depois vemos no que dá, ok?

- Sim, senhora! - ele bateu uma pequena continência involuntária. - Mas agora, a pergunta do momento: Quanto tempo a senhorita irá se atrasar? Pois o Eduardo está ansioso pra me mostrar o interior da casa.

- Ah! - e lá veio a voz do beicinho de novo. - Eu queria ver a casa com você.

- Mas você não está enrolada aí com a sua amiga?

- Pois é. - e ela completou após uma pausa. - A Marta tinha que ficar doente logo hoje? 

Roberto pode ouvir uma voz chamando por sua noiva do outro lado da linha.

- Já vou! Querido, tenho que ir. Mas me promete que não vai entrar na casa sem mim?

- Mas, querida, o Eduardo está querendo...

- Dane-se o Eduardo! Eu quero ver a casa com você! Promete que não vai entrar?

Ele deu um longo suspiro antes de responder:

- Prometo, querida! Vou ver com ele se marco um outro dia para fecharmos o negócio. 

Eliana agradeceu feliz, e se despediram.

Quando ele desligou o telefone percebera que Eduardo o observava com uma cara não muito boa. Com certeza ele havia ouvido parte da ligação, e não parecia feliz em ter ido até ali por nada. Ele tentou explicar ao corretor o que havia ocorrido, mas esse não se sensibilizou.

- Olha, Roberto, gosto muito de você, mas já tenho outra proposta por essa casa. Recusei por sua causa, mas o cara continua insistindo. Não posso ficar segurando um negócio por causa da sua noiva.

Roberto não tinha muito o que argumentar. Eduardo estava certo. Afinal, era o trabalho dele.

- É uma pena. Realmente gostei dessa casa. - ele olhou para a construção de dois andares.

- Vamos fazer o seguinte, Roberto: Eu posso segurar o outro comprador até amanhã de manhã, mas se você for fechar o negócio tem que ser ainda hoje. Você e sua noiva podem passar aqui mais tarde e pegar a chave com o Erasmo, ele mora naquela casa amarela do outro lado da pracinha, que tal?

- Acho ótimo! - e não podia se conter na sua felicidade. - Muito obrigado, Eduardo. Obrigado mesmo!

- Só não faça eu me arrepender, ok? - falou enquanto apertavam as mãos. - Bom, como eu ainda tenho um tempinho, não quer dar uma olhada?

- Mas eu prometi...

- Ela não precisa saber, cara! Aí quando vocês vierem juntos você já vai poder apresentar a casa pra ela melhor.

Roberto olhou para a casa e não conseguiu resistir a tentação. Resolveu mandar um torpedo para a noiva avisando que conseguira uma nova visita mais tarde com todos os detalhes. Achou melhor não ligar tanto pelo fato dela estar ocupada quanto pela possibilidade de que ela pudesse perceber alguma coisa em sua voz, denunciando a quebra na promessa.

Erasmo pediu licença aos dois para ir em casa almoçar, e Eduardo o avisou que mais tarde Roberto e a noiva viriam de novo ver a casa.

Depois disso, Eduardo lhe dera passagem para que ele conhecesse aquela que seria, ele já tinha certeza, a sua nova casa.

Roberto sentiu algo estranho ao passar pelo portão. Como se a casa já fizesse parte dele e ele nunca mais sairia de lá. Mal sabia o quão verdadeiro era esse sentimento. Esta emoção, ao invés de assustá-lo, apenas o impeliu adiante. Entrando pelo corredor que serviria de garagem para o seu carro em poucos dias até a porta lateral que servia de entrada principal.

- Quer fazer as honras? - Eduardo perguntou após destrancar a porta.

Ele colocou a mão na maçaneta, sentindo uma eletricidade percorrendo todo o seu corpo. Como se a casa lhe desse boas vindas. Igual a aranha dizia para a mosca que caía em sua teia.

A entrada da casa era um corredor, não muito longo, nem muito curto. A maioria das pessoas poderia cruzá-lo em uns dez passos. Roberto atravessou-o com apenas oito. Ao longo do corredor, haviam duas passagens, a da esquerda era larga, com uma porta dupla e levava a uma sala ampla onde uns poucos móveis estavam cobertos com lençóis brancos que ondulavam com a brisa que vinha da porta recém-aberta. Havia um cheiro de poeira e coisas velhas no ar.

- São os móveis que os familiares não quiseram ou não puderam levar. - explicou Eduardo entre um acesso de tosse e outro. - Desculpe, eu não sabia que estava com tanta poeira assim.

Roberto olhava a longa mesa que tomava todo o canto esquerdo da sala. Podia imaginar uma grande família sentada ao redor daquela mesa para jantar como uma imagem de antigos senhores feudais de quadros antigos. Não importava o que Eliana dissesse. Ele queria uma família grande, não queria passar a solidão de ser filho único como herança aos seus descendentes. Se fosse por ele, encheria aquela mesa de filhos e netos. Seu feudo!

Estava tão envolvido em seus devaneios que não escutara quando Eduardo lhe falara algo.

- Desculpe, pode repetir?

- Perguntei se você gostaria de ver a cozinha ou os quartos agora?

- Os quartos, acho melhor. Não sou um cara muito de cozinha. - sorriu disfarçando o momento de ausência.

- Então vamos subir. - apontou para a escada que terminava o corredor.

Quando iam saindo da entrada da sala, uma coisa chamou a atenção de Roberto.

- Por que só tem uma cadeira na mesa?

- Os filhos dividiram as outras cadeiras, mas nenhum deles quis mexer na cadeira do velho Domingos. Uma forma de respeito, eu acho.

O andar de cima era dividido em quatro quartos, sendo um deles uma suíte com banheiro próprio. Os outros três quartos dividiam o outro banheiro do andar que ficava próximo da escada.

Eduardo, entre tosses e espirros por causa da poeira no ar, contava de como era quando o velho Domingos ainda era vivo com sua mulher e seus três filhos, fazendo piadas sobre a briga pelo banheiro de manhã cedo, quando seu celular tocou.

- Desculpe, Roberto, mas eu tenho de atender. Você  se importa de deixá-lo sozinho? Mas a poeira está me matando e o sinal aqui dentro não é dos melhores com a minha operadora.

Roberto não se importou. Na verdade, ele não teria se importado se um meteoro caísse na terra e este fosse o último refúgio da humanidade. De forma que mal percebeu sua própria aquiescência a saída do corretor. Ele estava envolvido em seu próprio mundo naquele momento.

O que ele via não era a casa vazia e empoeirada de agora, ou a casa da família do velho Domingos. Era a sua casa que enxergava pelos seus olhos naquele momento. Em um dos quartos, o menor deles, já imaginava um escritório para ele, seu recanto, onde faria seu trabalho. Nos outros dois quartos já visualizava duas camas beliche em cada um. Criaria algum sistema para que seus filhos não se matassem pelo banheiro como os filhos do antigo dono. Na sua casa reinaria a ordem criada e mantida por ele, como o senhor do castelo.

E no último quarto, a suíte, ficaria o seu ninho de amor com sua amada esposa. Via a cama de casal no meio do recinto, onde os pombinhos teriam suas noites de amor. Entrou no banheiro da suíte e ficou surpreso ao ver uma banheira antiga, de louça. Não lembrava de ter visto isso na descrição do imóvel. Será que pensaram que isso reduzir o valor do imóvel? Uma bela relíquia como essa?

Ele passou a mão na louça antiga, impressionado com a qualidade do material e da conservação. Ergueu a mão até a altura dos olhos e viu a grossa camada de poeira nela. Pensou que a imobiliária deveria ter tido um mínimo de cuidado para limpar o interior da mesma forma que cuidavam do jardim.

Seria difícil precisar qual fora a causa, se fora a poeira, ou se ele tivera a impressão de ouvir algum barulho. O que quer que tenha sido, arrancou-o de seu estado de sonho. Roberto percebeu que havia alguma coisa errada. Em um primeiro momento, ele não conseguiu discernir o que era, mas depois ficou claro.

Ou melhor dizendo, ficou escuro.

Roberto olhou para a janela do quarto e viu a luz do dia já se extinguindo, cobrindo tudo com uma luz alaranjada de final de tarde. Mas como, pensou, se ainda era de manhã quando entrara na casa? Para onde teria ido o resto do dia?

Quando se aproximou da escada para voltar ao primeiro andar, ouviu novamente um barulho. Não chegou a distinguir exatamente o que era antes de balançar a cabeça e chegar a conclusão de que o papo de Eduardo de fantasmas com correntes no sótão estava fazendo-o ouvir coisas.

Conforme descia os degraus, casa passo era acompanhado de um estalo. Nos primeiros, o som era sutil, quase inaudível. Mas enquanto se aproximava do primeiro andar, ele podia sentir os estalos em seus ossos.

O mais estranho é que não ouvira qualquer ruído quando subira.

Parou para respirar um pouco. Sentia o ar entrando com dificuldade, como se acabasse de correr uma maratona e não descer um mero andar de escadas.

Durante a sua descida, a luz do entardecer praticamente se extiguira, mergulhando a casa em sombras, e por isso passou a usar a luz do celular para se guiar pelo corredor. 

Ele seguiu pelo corredor em direção à porta. No fundo do seu ser, alguma coisa dizia que, se saísse da casa, tudo ficaria bem.

O corredor parecia mais comprido agora do que quando entrara na casa. Não importava quantos passos desse, a porta parecia se manter além do seu alcance.

Quando seus dedos tocaram a maçaneta, soltou um suspiro de alívio tão profundo que parecia ter prendido a respiração por horas. Estava a salvo.

Só havia um problema, a porta estava trancada.

“Eduardo!”, ele pensou. “Ele deve ter levado as chaves.”

A mente humana precisa constantemente que as coisas façam sentido, e quando não fazem, nos agarramos a qualquer explicação, por mais ilógica que ela seja, para preencher este vazio. Roberto formulava, contrariando qualquer bom senso, que tudo aquilo só podia ser algum tipo de brincadeira do corretor de imóveis, talvez até junto com o jardineiro.

“É isso! Eles ficaram falando aquelas histórias sobre fantasmas para me assustar.”

Mas não ocorrera a ele que nenhum dos dois teria o poder para fazer o se pôr mais cedo.

Dotado desta nova compreensão sobre os acontecimentos, tentou usar o celular para ligar para o seu suposto piadista, mas o aparelho estava sem sinal, e a bateria já se aproximava do fim.

Voltou a ouvir os ruídos de antes. Agora mais altos. Pareciam gemidos e vinham da cozinha.

- Eduardo? - ele chamou enquanto caminhava na direção do outro cômodo. - Vamos parar com essa palhaçada! Você já deu as suas risadas, mas já perdeu a graça!

Na luz fraca do celular, ele teve a certeza de ver um vulto no canto do corredor que formava a cozinha. Mas ao chegar perto, não havia nada lá. Nada além de alguma coisa escrita com garranchos vermelhos na parede. 

“Uma lembrança da infância dos filhos do antigo proprietário?” Pensou enquanto lia em voz alta a letra tremida:

- Eu... disse... não en...

Ouviu-se um grito de algum lugar da casa. Um grito sofrido de dor, quase um uivo.

Instintivamente ele agarrou a grande faca de carne largada sobre a pia sem sequer se dar conta dela estar suja, como se tivesse sido usada a pouco tempo.

Ao sair da cozinha, a primeira coisa que percebeu foi a luz do sol nascente vindo das janelas.  E a segunda coisa foi a enorme mancha vermelha no chão do corredor, perto da saída.

Afastou essa imagem da cabeça, pois a luz do sol deu-lhe uma ideia esperançosa. Talvez pudesse chamar a atenção da janela. Em breve as pessoas iriam começar a sair para o trabalho, e a pracinha em frente da casa estaria apinhada de gente. Alguém que o visse, poderia ajudá-lo a sair daquele inferno.

Achou melhor tentar realizar seu plano do segundo andar, de onde teria uma maior chance das pessoas verem-no pela altura e sem  o jardim da frente atrapalhando.

Subiu a escada com enorme dificuldade, chegando a usar os dois braços para se apoiar nos corrimãos. E o fato de se recusar a soltar a faca de carne que pegara tornava este esta empreitada ainda mais difícil.

Quando chegou ao topo da escada, limpou o suor da testa enquanto tentava recuperar o fôlego. Começou a prestar atenção na própria mão. Estava mais enrugada, as veias mais saltadas, cheia de pequenas manchas.

“O que essa casa está fazendo comigo?”

Dirigiu-se para um dos quartos da frente, de onde poderia chamar a atenção das pessoas na rua, quando voltou a ouvir ruídos. Muito mais nítidos agora, como se estivessem bem próximos. Pareciam um choro.

Pelo canto do olho, percebeu um vulto. Virou-se para aquela direção por impulso, pois imaginava que, a exemplo do que acontecera na cozinha, ele desapareceria.

Só que não desapareceu.

O vulto era uma mulher, sentada no chão, os braços cruzados sobre os joelhos, a cabeça enfiada nos braços, e uma vasta cabeleira branca caindo, esparramada e desgrenhada, caindo para todos os lados. Ela chorava baixinho enquanto murmurava impossível de entender.

Aproximando-se com cuidado daquele estranho vulto, Roberto não saberia dizer se sentia-se aliviado ou assustado por encontrar outra pessoa naquela bizarra situação. Ao menos, ele esperava que fosse outra pessoa.

- Ei! Você! - chamou.

Sua voz parecia estranha aos seus ouvidos. Pigarreou, tentando limpar a garganta.

- Senhora!? - fez nova tentativa, aproximando-se um pouco mais.

A figura levantou a cabeça, mas não parecia realmente vê-lo. Seus olhos estavam inchados como se de tanto chorar, mas ele a reconheceu. Era a mesma velha que o agarrara às portas da casa. Mesmo com o rosto marcado, sem o seu “bebê”, com um vestido azul velho e puído, ele pôde reconhecê-la. E se ainda havia alguma dúvida, ela estava repetindo a sua ladainha de antes para confirmar sua identidade:

- Eu disse pra ele não entrar. Eu disse! Nós íamos ter um filho. Eu disse pra ele não entrar.

- Senhora, nós precisamos sair daqui. - ele a segurou, tentando trazê-la a razão.

Se os dois gritassem juntos, teriam mais chance de chamar a atenção e conseguir ajuda, ele pensou. No entanto, ela continuava no seu mantra, reagindo o mínimo para tentar se desvencilhar dele. Por fim, ele perdeu a paciência, e a agarrando com as duas mãos a sacudiu com força.

- Acorda, sua velha maluca!

Ela pareceu acordar assustada e olhou para ele, com uma mistura de pânico e ódio.

- Você! - ela vociferou. - Foi você! A culpa é sua!

Com uma velocidade surpreendente, ela agarrou a faca de carne que ele soltara para sacudi-la, e atacou-o causando um corte em seu braço. 

O terror de toda aquela situação, aliado à ira que vira nos olhos dela só lhe deixou uma opção: fugir! Levantou-se e correu tão rápido quanto pôde, só parando à porta do quarto para vê-la vindo em seu encalço, faca em punho.

A escada que ele subira tão dificilmente foi transposta de forma ligeira e trôpega, terminando os últimos degraus com um tombo. O pânico deu-lhe forças para se levantar de um pulo. Infelizmente a fúria havia tido um efeito similar sobre a velha, e ela saltou os últimos degraus atrás dele com um rosnado.

Os pulmões ardiam, a respiração acelerada, e a perna direita mancava dolorida enquanto ele corria em direção à porta, sem ao menos pensar na possibilidade dela ainda estar trancada. Tudo em sua mente era que precisava fugir para salvar sua vida.

O som metálico de um trinco reverberou pelo corredor, a porta estava sendo aberta por fora. Diante dele, a esperança se materializou na forma de um anjo azul. O seu anjo azul.

- Oi, querido! Surpresa! - Eliana entrou gritando, mas estancou com a cena a sua frente.

Roberto tinha lágrimas nos olhos, e sentiu o ar lhe faltar, mas não pela emoção, e sim pela faca alojada em suas costas, perfurando-lhe o pulmão, e fazendo-o cair de cara no chão, com a velha sobre ele.

A faca subia e descia de forma rápida e descompassada, enquanto o alvo de seus ataques lutava desesperadamente para segurar-se ao seu último fio de vida.

A velha parou, arfando e olhou Eliana paralisada pela primeira vez, mas tudo o que viu foi um obstáculo no seu caminho para fora daquela casa maldita. Como um animal, ela saltou sobre mulher mais jovem, jogando-a para o lado e alcançando a liberdade.

Eliana ainda estava atordoada com tudo o que acabara de ocorrer, quando a porta da frente bateu, ainda com a chave na fechadura. Não conseguia entender, fugira da prova de roupa e encontrara o corretor do lado que contara tudo. Decidira fazer uma surpresa, mas se deparou com esta cena de tamanha violência sem sentido.

- Eliana... - O velho esfaqueado sussurrou, chamando a sua atenção.

Ao som do seu nome, a jovem se aproximou do homem a tempo de vê-lo rejuvenescer diante dos seus olhos e assumir as feições do seu amado, enquanto a vida se esvaia de seus olhos.

- Não! Não! Ó meu Deus! Eu disse para você não entrar! Eu disse! Nós íamos ter um filho, meu querido.

Ela repetia sem parar, colocando a cabeça do noivo em seu colo, enquanto o sangue deste se espalhava formando uma grande mancha vermelha.

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