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domingo, 28 de abril de 2013

Um poema para a imortalidade



Doce Annie, vinho que me aliviou as mazelas desse mundo de tantas desgraças no qual já chegamos com pranto copioso, o que farei de minha vida agora? Não sei o que responder neste momento de dor incalculável. Em minha cólera, posso apenas destruir o meu aposento, único meio que consigo enxergar para obter um alívio da dor de minh’alma.

 Mataria deuses, me doaria para criaturas nefastas, faria qualquer coisa para tê-la novamente, mesmo que por apenas uma noite. Todavia, como um homem esclarecido, livre dos grilhões da superstição típica do populacho, não acredito que possa retornar de tua sepultura.

Antes de tornar-me adulto, era demasiadamente negativo. Sendo filho único, os maiores gastos de meus pais eram comigo, logo tive a melhor educação que um nobre pode receber. Contudo, sendo o conhecimento também sinônimo de dor, como dizem alguns filósofos, percebi prematuramente a podridão na qual a nossa sociedade fornica. Tente imaginar os efeitos disto em uma mente que ainda está amadurecendo, são os mais desastrosos possíveis.

Passei por um intenso tratamento psiquiátrico após tentar o suicídio pela primeira vez aos doze anos, ingerindo alguns cogumelos venenosos. Depois comecei a tomar remédios tão fortes que tinha não mais que cerca de duas horas de lucidez por dia, fato que me afastou do convívio social. Entretanto, tudo mudou ao lhe encontrar em uma fabulosa manhã de sol em pleno inverno, fenômeno atípico, tendo em vista que a estação em nosso país costuma ser rigorosamente fria. Talvez a tua simples presença fez o sol ordenar que as nuvens se abrissem para que ele pudesse contemplar o seu corpo da cor do chocolate e os cabelos negros encaracolados que se movimentavam devido às carícias dos ventos. Teus olhos eram da cor do mel.

Relembrar cada um dos detalhes que tanto me encantaram em ti, afastando as trevas que me consumiam no passado, serve como lenha na fogueira de minha ira, até que brado:

—Saiam de meu castelo, malditos criados! Vossos murmúrios me enervam! Saiam, antes que a besta contida em mim mate a cada um de vocês! – em seguida, ouço os passos desesperados e vejo dezenas de sombras correndo pela trilha da montanha rumo à cidade.

Retomando o estado colérico, derrubo o armário e quebro as janelas com socos, me infligindo cortes profundos. Depois esfaqueio o colchão de nosso antigo ninho com o punhal de prata que carregava em minha cintura, puxando um punhado do enchimento após cada estocada. Começo a me sentir fraco, o sangue que escorre também vai aos poucos me afastando desse mundo de martírios titânicos e parca esperança. Pelo menos, uma benção.

Trôpego, vou até a penteadeira sobre a qual repousam as tuas joias e maquiagens. Olho acima do móvel, onde um quadro nosso está preso à parede em uma moldura de ouro tão reluzente quanto o sentimento que tínhamos. Toco as peças que atraíram incontáveis olhares de inveja das damas de maior prestígio e penso:

—Provavelmente aquelas meretrizes filhas de porcas devem estar celebrando!

Por impulso, agarro a pintura, que retratava nós dois no jardim na última primavera, e arremesso contra a parede do lado oposto ao que estou. A parte de trás de peça, feita de madeira, se quebra e deixa uma pequena folha escapar. Ajoelho-me no chão e engatinho até o local, minha energia não para de diminuir, minha pele branca está ainda mais alva e meus cabelos longos ruivos caem diante de meus olhos.

Deito-me no chão, olhando para o teto, o papel está ao meu lado, o pego. Ao pousar minha visão sobre o seu conteúdo, constato que é um poema que escrevi para você, minha amada, jurando que as suas letras tornariam a nossa união eterna. Quem imaginaria que três anos depois você seria vítima de uma doença misteriosa e teria como cama uma cova nos fundos de minha morada?

Começo a ler o poema lentamente, degustando cada sílaba, mais lágrimas banham a minha face.

Anjo de destemor, que mergulhou em meu abismo ao ouvir
O clamor, salvando o que havia de bom, sou eternamente
Grato a ti!

De água turva, negra, fez-me nascente límpida, revigorante.
Sorveu-me em goles gentis, mas também me permitiu desfrutar
De tua seiva.

Glorioso e mágico é o mundo que me auxiliou a tecer entre
Os suspiros espiados pela lua e as ternuras diurnas, com os
Fios de nossos sonhos.

Que as tuas asas sempre me envolvam, pois jamais hesitarei
Diante do mais atroz inimigo que ousar pensar em te atacar,
Sou vosso cavaleiro!

Que minhas palavras, infinitamente mais pesados que toda a
Baboseira conservadora, considerada sacra, do clero decretem
A tua imortalidade!

Se alguma divindade, residente de esferas desconhecidas se
Irritar com o que digo, que mil raios a partam e os urubus a
Devorem!

Violentas golfadas de sangue pontuam o final do poema, quando ouço algo se arrastando no corredor que conduz até onde estou. Tento virar a cabeça na direção da entrada, mas não consigo mover sequer um músculo devido à debilidade dos últimos segundos de vida.

A porta se abre e o que quer que seja, geme como um moribundo. O som dos pés chega ao meu lado e finalmente enxergo a minha amada com os lábios repuxados, exibindo dentes esverdeados. Seus olhos opacos e a pele cinzenta, além do vestido de noiva com o qual foi enterrada, ainda inflamam o meu coração, sei que ela se move graças ao meu amor.

—Sinto, logo vivo – digo em semelhança à frase mais famosa do célebre filósofo francês, René Descartes.

Quando ela se ajoelha, o rigor mortis faz as juntas estalarem como gravetos. Fecho os olhos, mais uma vez as nossas línguas se tocam e até mesmo o sabor da terra me excita. Podem alguns me julgarem como doentio, mas eu a amo mais do que a mim mesmo! Com esse gesto de carinho, faleço nos braços dela, mas antes que o dia nasça, ressurjo, para mais uma vez caminhar sobre a terra com o meu anjo. Alimentando-me dos vivos incautos e tendo cemitérios como leito.

Um comentário:

  1. Sómente alguém com muito sentimento para escrever um conto como este, onde a vida torna-se insuportável com a perda de um grande e verdadeiro amor. Mas acho muito drástica a atitude de tirar a própria vida, apesar disso ainda acontecer, por mais terrível que seja a dor da perda devemos seguir em frente.
    Lindo conto, Ednelson.
    Abraçoss, Ana Luisa.

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